E-mail from Earl E. Fitz, professor
of Comparative Literature, Spanish and Portuguese at Vanderbilt University
(2010).
Regina
- once again, my students and I ADORED Arca
Sem Noé! The stories are real gems; they just get better and better
the more times you read them. Funny, smart, and pungent. And with a
razor sharp wit and social consciousness. I love them!... A collective
hug from all of us here at VU.
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Entrevista dada pela autora a Mateus L. de
Souza, morador do Copan e aluno de jornalismo da Universidade de São Paulo,
para o trabalho de TCC dele (2013).
P:
Regina, você nasceu no interior de São Paulo. Quando e como você chegou na
capital paulista?
R: Cheguei aos 8 anos de
idade (1965), com minha família. Meus pais se mudaram para a capital (bairro de
Itaquera) porque conseguiram empregos melhores na região da Grande São Paulo.
P: Em
quantos lugares você morou antes de ir pro Copan?
R: Meus pais acabaram se
estabelecendo no município de Osasco. Depois que saí da casa deles, morei em cerca de 6 bairros
diferentes, por exemplo, Perdizes, Praça da Árvore, Bela Vista, Butantã...
Também morei um ano na Europa.
P: Quando
e por que você resolveu morar no Copan?
R: O Copan combinava quatro
fatores que me interessavam: boa localização (com fácil acesso a transporte
público, comércio, cultura, lazer, etc.); bons apartamentos; aluguel acessível
ao meu poder aquisitivo; arquitetura e legado cultural do prédio.
P: Você
já tinha contato com o prédio antes?
R: Não, só conhecia sua
fama, tanto a boa quanto a “má”.
P: Tinha
vontade de morar lá ou foi uma coisa que simplesmente aconteceu?
R: Tinha muita vontade de
morar lá: o prédio me fascinava (e ainda me fascina imensamente).
P: Em
1990, ano em que você chegou no prédio, ele não gozava de boa reputação, tendo
apelidos como Favelão, Trepan, dentre outros. Ele era conhecido como lugar de
prostituição, venda de drogas, além das estruturas elétricas estarem
comprometidas, e faltar manutenção, limpeza. Quais as lembranças que você tem
desse período?
R: Lembro de rumores e
queixas sobre isso tudo, mas só presenciei algumas coisas.
P: O quê,
por exemplo?
R: Vi alguns equipamentos
quebrados, garotas e rapazes de programa em elevadores. Às vezes a lixeira
coletiva ficava malcheirosa. Mas nunca vi o prédio sujo não. Estava sempre
limpinho.
P: Qual
era a sua sensação aqui dentro do prédio?
R: A sensação era de estar
muito viva! Eu achava extremamente excitante fazer parte daquele
famoso e diversificado caldeirão urbano. Ele estimulava a minha imaginação
artística. Ao mesmo tempo, eu tomava cuidado porque era um ambiente um pouco
arriscado para uma mulher morando sozinha (meu caso). Na verdade, não pretendia
morar lá para sempre. Meu plano era mudar para um apartamento melhor, numa
região que me oferecesse uma qualidade de vida melhor do que o centro da
cidade.
P: Em
1993, assumiu, como síndico do prédio, o seu Affonso. Ele é apontado em
entrevistas, por moradores e conhecedores do prédio, como responsável pela
mudança por que o prédio passou. Você chegou a ter contato com ele ou a sentir
alguma mudança?
R: Tive pouco contato com
ele; não deu tempo de sentir a mudança porque saí do prédio no início de 1995.
P:
Acredita que tenha sido um processo mais lento que você não chegou a presenciar?
R: Exato.
P: Você
estudou cinema na ECA e o Arca sem Noé
foi seu primeiro livro. Você sempre flertou com a escrita?
R: Sim, eu sempre adorei ler
e escrever. Aliás, entrei na ECA para fazer jornalismo. No decorrer do curso,
me apaixonei por cinema e mudei de rumo. Mas a minha parte preferida do
processo cinematográfico sempre foi, justamente, a escrita do roteiro.
P: Acha
que toda essa vida diversa do Copan ajudou a instigar seu lado criativo como
escritora?
R: Essa vida no Copan me
estimulou a criatividade em geral. No início, eu queria fazer um filme. Tinha
algumas ideias e cheguei a fazer pesquisas e entrevistas. Mas “adotei” a
literatura, abandonando as complicadas e dispendiosas lides cinematográficas,
então meu projeto se converteu em livro de contos.
P: Como
era sua rotina no prédio? O que você costumava fazer? Vinham muitos amigos te
visitar? Você fez amizades com moradores do prédio? Em que bloco você morou?
Morou sempre no mesmo apartamento?
R: Morei sempre em
apartamentos de um quarto, no bloco E, de frente para o então Hilton Hotel
(fonte de inspiração para parte do conto “A voyeuse”). Primeiro morei no 27º
andar, num apartamento alugado. Logo que consegui juntar dinheiro suficiente,
comprei um apartamento praticamente igual, no 22º andar. Eu passava a maior
parte do tempo fora do Copan, trabalhando. Quando estava no prédio, costumava
tomar sol no terraço (experiência que me inspirou a escrita do conto “As duas
amigas”). Também levava diariamente meus 2 gatos para passear na escadaria de incêndio
(inspiração para parte do conto “A menina dos gatos”.) Fiz amizade com alguns
vizinhos; uns acabaram deixando o prédio; dois deles faleceram. Eu me dava
muito bem com os porteiros (inspiração para parte do conto “O fantasma”).
Recebia algumas visitas, de gente do Copan mesmo, ou então de amigos de fora.
Às vezes, comia em alguma lanchonete da galeria, por exemplo, a Balloon, que
não existe mais. Às vezes, cortava o cabelo num salão que havia lá, não sei se
ainda existe. Ia ver filmes no Cine Copan (que foi transformado numa igreja
evangélica – inspiração para parte do conto “A mulher de branco”). Eu batia
muita perna por aquele centro afora, entrando em contato com gente e situações
que me estimulavam extremamente. Uma dessas pessoas que eu via era um vendedor
de ervas – um nortista – que tinha
uma banca na praça da Sé. Não sei onde ele morava nem como ele vivia, mas minha
imaginação transformou-o num morador do Copan e criou o conto “A prostituta”.
P: No Arca, temos diversos personagens, como
autor de teatro, menina com gatos (e traficante), prostituta, homossexual,
casal de velhos, quarentona solteira, a senhora religiosa, entre outros. A
gente que mora aqui no Copan sempre ouve falar dos personagens típicos do
prédio. E é lógico que os contos mesclam ficção e realidade. Eu queria que você
contasse um pouco mais desse processo, dessa mescla, se pende mais para um lado
ou para o outro...
R: Parte da resposta a esta
pergunta está na resposta acima. Os enredos das minhas histórias foram
inventados, especialmente os finais. Quanto aos personagens, normalmente eu
fazia assim: via uma pessoa que, para mim, fosse “cinematográfica”, ou seja,
interessante o suficiente para aparecer em filme, e, por meio dos recursos da
criação ficcional – invenção, exagero, satirização, caricaturização, etc.
– transformava essa pessoa
em personagem de conto. Quase todos os personagens do meu livro são muito mais
invenção (muito mais “mentira”) do que descrição de pessoas reais. Os dois
personagens mais parecidos com as pessoas que os inspiraram são o dramaturgo
Márcio Flávio e a mulher de branco. Esses são reconhecíveis, pelo menos para
quem conheceu as pessoas reais. Os outros personagens são mesclas de gente que
cruzei pela vida afora (não apenas no Copan), incrementadas por uma boa dose de
invenção. Por exemplo, o personagem Agenor, do conto “O fantasma”, tem muito
mais do meu próprio pai, que nunca morou no Copan, do que de qualquer
funcionário do prédio. As lendas supersticiosas locais que são mencionadas num
trechinho do conto foram colhidas por mim, em conversas com funcionários e
moradores mais antigos. O único personagem fiel à realidade é o próprio
edifício enquanto estrutura arquitetônica. Cada conto contém a descrição de
pelos menos uma parte física do prédio, para nela se desenvolverem os
acontecimentos principais vividos pelos personagens. Num conto, vemos a
garagem. No outro, a escadaria de incêndio. Em outro ainda, o terraço. Um bloco
de morador mais rico, outro bloco de morador mais pobre. A galeria. As rampas do
bloco B. E assim por diante. No final do livro, o leitor tem uma imagem quase
completa do prédio. Mas, independentemente do quanto tenham de cópia fiel ou de
fantasia, a verdade é que os fatos e os personagens que atuam dentro de um
livro de contos fazem parte de um universo imaginário, mítico, fabuloso (de
“fábula”), um universo de mentira criado pela imaginação do artista.
P: Além
disso, os contos, quase todos, têm histórias que caminham em uma direção, mas
acabam de modo tragicômico, às vezes com requintes de crueldade. O quanto essa
temática urbana, de fim de século, de um Copan decadente, com uma classe média
empobrecida, te influenciou nisso? Você ouvia histórias parecidas nos
corredores?
R: Como eu disse, as
histórias foram inventadas por mim, menos as “lendas” supersticiosas locais
mencionadas num trechinho do conto “O fantasma”. Há ficcionistas que não se
preocupam em inventar enredos e não valorizam a capacidade de inventar uma
história mais elaborada. Não sou esse tipo de ficcionista. Valorizo muito o
talento para a imaginar, criar, inventar e contar histórias. Quando escrevo,
gasto um bom tempo elaborando a narrativa, os acontecimentos para os meus
personagens viverem. Trabalhar histórias em registro tragicômico faz parte do
meu estilo. Faço isso em todos os meus livros. No Arca, trabalhei, em registro tragicômico, o caos e a alienação da vida
urbana em uma megalópole sul-americana do final do século passado. O Copan funciona como um símbolo desse
tipo de vida.
P: O
título é absolutamente genial. Você sempre encarou o Copan como uma arca sem
Noé?
R: Só pensei nisso na hora
de bolar o título.
P: Em
1999, você resolveu mudar para os Estados Unidos. Qual foi sua relação com o
prédio entre o ano em que saiu daqui até o ano da mudança? Por que se mudou
daqui? Você ainda frequentava o prédio? Deixou amigos aqui? Ainda mantém
contato com eles?
R: Quando mudei para os
Estados Unidos, já havia saído do Copan fazia 4 anos e morava nos Jardins. Saí
do Copan porque consegui comprar um apartamento um pouco melhor nos Jardins, o
que me possibilitou uma qualidade de vida melhor do que a que eu tinha no
centro da cidade. Deixei dois grandes amigos no Copan, embora hoje só tenha
contato com um deles, que é professor de jornalismo na USP e, modéstia à parte,
grande fã do meu livro. Voltei ao Copan algumas vezes para visitá-lo.
P: Qual
era o diferencial de morar num cartão postal como o Copan?
R: Se o prédio está num
cartão postal, ele é importante, então quem mora ali deve se sentir importante
também. Essa lógica pode servir como uma espécie de remédio contra a
vulnerabilidade que sentimos no meio do caos e do anonimato urbanos.
P: Do que
sente mais falta daqui?
R: Sinto falta
principalmente da efervescência, da ebulição urbana, com sua diversidade de
tipos e vivências, sua imprevisibilidade.
P: O que
você aprendeu morando no Copan? E que como você definiria o Copan em uma
palavra ou em uma imagem?
R: Aprendi sobre as
complicações da vida humana e a arte de refletir essas complicações na
literatura. A melhor imagem para identificar o Copan continua sendo a da
fachada no formato de um S invertido.
P:
Atualmente, o prédio vem passando por uma efervescência cultural (com peças de
teatro, exposições), habitacional (virou cool
morar no Copan e os preços subiram muito também, acompanhando a especulação
imobiliária da cidade), imagética (vários comerciais são gravados aqui, o
prédio aparece em novelas, reportagens na TV) -- além de toda a manutenção
estar impecável no dia a dia, com limpeza, serviços de eletricistas,
encanadores, elevadores novos, etc. Daí dos EUA, que notícias você tem do
Copan? Como você enxerga o prédio hoje?
R: Mas o prédio sempre
esteve em efervescência, Mateus. Sempre foi muito filmado/fotografado. E ele
ainda tinha cinema, e aquele cinema serviu como teatro também, durante uns
tempos. O fato de o prédio ser fotogênico e de estar ligado ao Oscar Niemeyer
sempre atraiu atenção – nacional e, em menor medida, internacional. O Copan
sempre foi um clássico paulistano. A diferença, ao que parece, entre o Copan de
hoje e o da minha época é a situação política e socioeconômica do Brasil. Hoje
o brasileiro tem um melhor poder aquisitivo e, apesar da corrupção política que
persiste, os principais líderes políticos buscam mais justiça social e
econômica para a população em geral. As melhorias do Copan, hoje, acompanham a
melhora do Brasil hoje. As notícias que tenho do prédio me vêm de pessoas como
você e o meu amigo jornalista que mora aí, e de inúmeras outras pessoas que
entram em contato comigo todos os anos -- geralmente porque estão fazendo um
trabalho escolar sobre o Copan e querem saber sobre meu processo de criação do
livro enquanto moradora do prédio.
P: Por
último, o livro caminha para completar 20 anos. Como têm sido essas duas
décadas? Como sua vida mudou depois dele? Moradores ou admiradores do prédio
vêm falar com você sobre ele?
R: Veja a resposta acima
para parte desta resposta. Ter morado no Copan e publicado o Arca sem Noé causaram uma virada muito importante na
minha vida. Marcaram o início da minha carreira de escritora, que continuou com
a publicação de mais livros (sobre outros temas). O Arca ganhou o Jabuti/Contos; o conto “O Mau
Vizinho” ganhou um prêmio da Rádio France Internationale. Foi no meio literário
que conheci meu marido, com quem moro nos Estados Unidos. O Arca foi traduzido para o inglês e publicado nos
Estados Unidos. É bastante usado, com muito sucesso, nas duas línguas, em
cursos de literatura luso-brasileira e latino-americana em universidades de
países de língua inglesa, principalmente nos Estados Unidos. E esse interesse
não se restringe a acadêmicos e estudantes. O Arca está mais vivo do que nunca. Foi reeditado pela Record em 2010, o que
diz muito sobre a força do livro, porque é raro uma obra contemporânea de ficção
brasileira ser reeditada tanto tempo depois da edição original.
Agora, não mais em tom de pergunta, mas de comentário
(se você quiser complementar, sinta-se à vontade por favor), acho que existem
duas leituras do livro, uma de um não morador e outra de um morador. Digo isso
porque eu, como morador, me sentia dentro do livro, pois identificava os
lugares, as pessoas. Acho que, com todo livro que se passa em algum lugar,
acontece um pouco isso, mas acho que no Copan, por ele ter uma atmosfera
diferente, isso se realça ainda mais.
R: É verdade. É curioso observar que os leitores
estrangeiros que mencionei acima normalmente não se preocupam em saber se os
personagens e fatos são copiados de pessoas e fatos reais. Eles embarcam no
caráter ficcional da narrativa e viajam na análise do livro enquanto
literatura. E também vêm o Copan como um símbolo, um microcosmo do Brasil
urbano da época. O Arca transcende o Copan, do mesmo modo que o
filme Manhattan, do Woody Allen,
transcende Manhattan, e que o filme Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, transcende o Rio de Janeiro.
E um último comentário: li uma crítica que saiu na Tribuna de Santos na época, falando que
o conto “Falta d´água” tinha potencial para ser melhor e mais completo. Mas ele
foi meu favorito!! hahahaha
R: Você não está sozinho. Já ouvi outra pessoa – um
professor de literatura americano – dizer que esse conto é um dos melhores do
livro. “Falta d’água” está sendo incluído na nova edição de uma coletânea de
textos brasileiros publicada nos Estados Unidos. Essa coletânea é um dos 3
livros mais usados nos cursos de letras luso-brasileiras nesse país.